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ESTAS PALAVRAS SÃO DEDICADAS A TI...

"São como um cristal, as palavras. Algumas, um punhal, um incêndio. Outras, orvalho apenas. Eugénio de Andrade

"São como um cristal, as palavras. Algumas, um punhal, um incêndio. Outras, orvalho apenas. Eugénio de Andrade

ESTAS PALAVRAS SÃO DEDICADAS A TI...

21
Jul07

O VELHO E O RICO

Paula Valentina
Conto de Jorge Bucay retirado do Livro "deixa-me que te conte" - Os contos que me ensinaram a viver...

Era uma vez, nos arredores de uma pequena aldeia, duas casas vizinhas. Numa vivia um afortunado e rico agricultor. Estava rodeado de criados e tinha acesso a tudo o que se pudesse imaginar.
Na outra, um casebre humilde, vivia um velhinho de hábitos muitos austeros, que dedicava grande parte do seu tempo a trabalhar a terra e a rezar.
O velho e o rico cruzavam-se diariamente e trocavam algumas palavras em cada encontro. O rico falava do seu dinheiro e o velho falava da sua fé.
- A fé! - troçava o rico. Se, como dizes, o teu Deus é assim tão poderoso, porque é que não lhe pedes para te enviar o suficiente para não passares as privações que passas?
- Tens razão - disse o velho. E enfiou-se em casa.
No dia seguinte, quando se encontraram, o velho tinha a felicidade estampada no rosto.
- Que se passa, velho?
- Nada. Mas segui o teu conselho e pedi a Deus, hoje de manhã, para me enviar cem moedas de ouro.
- Ah, sim?
- Sim. Disse-lhe que, como tenho sido boa pessoa e respeitado as Suas leis, merecia um prémio e que queria as moedas. Parece-te uma quantia excessiva?
- Não importa a minha opinião disse o rico, trocista. - O que importa é que ao teu Deus não pareça excessiva. Talvez Ele ache que mereces um prémio de vinte moedas, ou de cinquenta, ou de oitenta, ou de noventa e duas. Quem sabe?
- Ah, não. Deus pode decidir se eu mereço o prémio ou não, mas o meu pedido foi muito claro. Quero cem moedas. Não aceitarei vinte, nem trinta, nem noventa e duas. Pedi cem e não tenho dúvidas de que, se o meu bom Deus puder responder ao meu pedido, o fará. Ele não vai regatear comigo, nem eu com Ele. Cem é o pedido e cem me enviará. Não penso aceitar nem uma moeda a menos.
- Livra, estou a ver que és exigente! - disse o homem rico.
- Assim como Ele me exige, também eu exigirei d'Ele respondeu o velho.
- Não me pareces capaz de rejeitar as vinte ou trinta moedas que te mande o teu Deus, só por não serem cem.
- Pois recusarei qualquer quantia inferior a cem. No entanto, se Deus achar que é pouco e decidir mandar-me mais, também não aceitarei o resto.
- Ha, ha! Estás completamente louco e queres fazer-me acreditar nessa história da tua fé e da tua determinação! Ha, ha! Gostava de te ver manter a tua palavra. Ha, ha!
E cada um regressou a sua casa.
O rico não sabia explicar porquê, mas o velho deixava-o nervoso. Que lata! Como é que ele podia dizer que não aceitaria menos de cem moedas de ouro? Tinha que desmascará-lo e ia fazê-lo nessa mesma tarde.
Preparou um saco com noventa e nove moedas de ouro e foi a casa do vizinho. O velho estava de joelhos, a rezar.
- Querido Deus, ajuda-me nas minhas necessidades. Julgo que tenho direito a essas moedas. Mas lembra-te: são cem moedas. Não me conformarei com o que me enviares. Quero exactamente cem moedas...
Enquanto o velho rezava, o rico subiu ao telhado e atirou as moedas pelo buraco da chaminé. Depois, desceu e foi espiar.
O velho continuava ajoelhado quando ouviu o tilintar metálico pela chaminé abaixo. Lentamente, levantou-se, aproximou-se da chaminé, pegou no saco e sacudiu o pó e as cinzas.
A seguir, dirigiu-se para a mesa e esvaziou o conteúdo do saco em cima do tampo. A montanha de moedas materializou-se diante dos seus olhos. O velho caiu de joelhos e agradeceu ao bom Deus a prenda que lhe enviara.
Terminada a prece, contou as moedas. Eram noventa e nove! Eram noventa e nove moedas.
O homem rico continuava à espera, preparado para comprovar a sua teoria. O velho levantou a voz para o céu e disse:
- Deus meu: vejo que a tua decisão foi cumprir o desejo deste pobre velho, mas vejo também que os cofres do céu só tinham noventa e nove moedas. Não quiseste fazer-me esperar por apenas uma moeda. No entanto, como te disse, não quero aceitar nem uma moeda a mais nem uma a menos de cem...
«és um imbecil», pensou o rico.
- ... Por outro lado - prosseguiu o velho -, tenho total confiança em Ti. Portanto, e só desta vez, vou deixar-te escolher à vontade o momento em que me enviarás a moeda que me deves.
- Traição! - gritou o rico. - Hipócrita!
E, aos gritos, desatou a bater na porta do seu vizinho.
- És um hipócrita! - continuou a berrar. - Disseste que não ias aceitar menos de cem e já estás a meter essas noventa e nove moedas ao bolso, como se nada fosse. Tu e a tua fé em Deus não passam de uma mentira.
- Como sabes das noventa e nove moedas? - perguntou o velho.
- Sei porque fui eu que te mandei essas noventa e nove moedas, para te provar que és um charlatão. «Não aceitarei menos de cem.» Ha, ha, ha!
- E, de facto, não aceitarei. Deus há-de enviar-me a última moeda quando quiser.
- Ele não te vai enviar nada, porque fui eu quem mandou essas moedas, como já te disse.
- Não vou discutir se foste tu o instrumento que Deus utilizou para satisfazer o meu desejo ou não. Mas a verdade é que este dinheiro caiu pela minha chaminé enquanto eu o pedia e, portanto, é meu.
O homem rico trocou o sorriso por uma carranca.
- Como, é teu? Esse saco e essas moedas são meus. Fui eu que os enviei.
- Os desígnios de Deus são incompreensíveis para o ser humano - disse o velho.
- Maldito sejas e maldito seja o teu Deus. Devolve-me o dinheiro ou levo-te ao juiz e vais acabar por perder também o pouco que tens.
- O meu único juiz é o meu Deus. Mas se te referes ao juiz da aldeia, não tenho problema nenhum em expor-lhe o caso.
- Está bem, então vamos.
Vais ter de esperar que eu compre uma carroça. Ainda não tenho uma e um velho como eu não se pode dar ao luxo de ir a pé até à aldeia.
- Não precisas de esperar. Ofereço-te a minha carruagem.
- Agradeço a tua oferta. Nestes anos todos, nunca me ajudaste em nada. Bom. Seja como for, devemos esperar que passe o Inverno. Faz muito frio e a minha saúde não aguenta uma viagem à aldeia sem um bom casaco.
- Estás a tentar empatar - disse o rico, furioso. - Dou-te o meu próprio casaco de pele, para que possas viajar. Tens mais alguma desculpa?
- Nesse caso - disse o velho -, não me posso negar a ir.
O velho vestiu as peles, subiu para a carruagem e partiu rumo à aldeia, seguido pelo homem rico, que ia noutro transporte.
Chegados à povoação, o homem rico apressou-se a pedir audiência ao juiz e, quando este os recebeu, contou-lhe em pormenor o seu plano para desacreditar a fé do velho, que lhe tinha enviado as moedas pelo buraco da chaminé e que o velho, depois, se recusara a devolvê-las.
- Que tens a dizer, velho? - perguntou o juiz.
- Senhor juiz: espanta-me ter de vir aqui confrontar o meu vizinho por causa deste assunto. Este homem é o mais rico da cidade. Nunca foi solidário, nunca teve um gesto de caridade para com os demais e não me parece necessário eu argumentar em minha defesa. Quem poderia acreditar que um homem avaro como este tenha sido capaz de pôr quase cem moedas num saco e atirá-las pela chaminé do vizinho? Parece-me claro que o pobre homem andava a espiar-me e, ao ver o meu dinheiro, inventou esta história, motivado pela cobiça.
- Inventar? Seu velho maldito! - gritou o rico. - Tu sabes que é verdade o que eu disse. Nem tu acreditas nessa patranha de Deus te ter enviado as moedas. Devolve-me o saco.
- É evidente, senhor juiz, que este homem está profundamente perturbado.
- Claro que estou! Fui roubado! Exijo que me devolvas o saco.
O juiz estava estupefacto. Os argumentos de ambos obrigavam-no a tomar uma decisão, mas qual seria a mais justa?
- Devolve-me o dinheiro, seu velho mentiroso - dizia o rico. - Esse dinheiro é meu e só meu.
De repente, o rico transpôs a barreira de madeira que os separava e, fora de si, tentou arrancar o saco das mãos do velho.
- Ordem! - gritou o juiz. - Ordem!
- Está a ver, senhor juiz? A cobiça deixou-o louco. Não me admirava nada que, se conseguisse o saco, depois começasse a dizer que a carruagem em que vim também é dele.
- E é minha! - apressou-se a dizer o rico. - Emprestei-ta. - Está a ver, senhor juiz? Só falta dizer que também é dono do meu casaco.
- Mas eu sou dono desse casaco! - gritou o rico, descontrolado. - É meu, é tudo meu: o saco, o dinheiro, a carroça, o casaco... É tudo meu! Tudo!
- Alto! - ordenou o juiz, que já não tinha qualquer dúvida. - Não tens vergonha de querer roubar a este pobre velho o pouco que tem?
- Mas... mas...
- Nem mas, nem meio mas. Estás cheio de ganância e cobiça - continuou o juiz. - Por teres tentado roubar este pobre velho, condeno-te a uma semana de prisão e terás de pagar ao teu vizinho uma indemnização de quinhentas moedas de ouro.
- Desculpe, senhor juiz - disse o velho. - Posso falar?
- Podes, velho.
- Penso que o homem já aprendeu a lição. Peço-lhe que, apesar de ele ser meu adversário, o senhor o liberte da pena e lhe imponha uma multa simbólica.
- És muito generoso, velho. Que propões? Cem moedas? Cinquenta?
- Não, senhor juiz. Penso que o pagamento de uma só moeda será castigo suficiente.
O juiz bateu com o martelo na mesa e sentenciou:
- Graças à generosidade deste homem, e não por desejo do Tribunal, impõe-se ao réu uma multa simbólica de uma moeda de ouro, que deverá ser paga imediatamente.
- Protesto! - disse o rico. - Protesto!
- A menos que o condenado rejeite a gentil proposta deste bom homem e prefira a sentença menos benévola deste tribunal.
O homem rico, resignado, sacou de uma moeda e entregou-a ao velho.
- Assunto encerrado - disse o juiz.
O rico saiu desenfreado na sua carruagem e foi-se embora da aldeia. O juiz cumprimentou o velho e retirou-se. O velho levantou os olhos para o céu.
- Obrigado, Deus. Agora sim. Não me deves nada.

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