(Imperatriz de Lava-pés)
QUERIDO DEUS:
Gosto desta tarefa em que andamos empenhados, tu e eu, pois vou reflectindo na minha vida diante de ti ao voltar do hospital. É bonito partilhar a vida contigo; embora sabendo como me sinto fraca e pequena, fazes-me sentir como se fosse A Imperatriz de Lava-pés. Julgo que sabes que se trata de uma dança própria do meu bairro que toda a gente conhece desde que o Mestre Lara a descreveu.
Recordo-me de um filme que me encantou quando era pequena, no qual um príncipe se apaixonava por uma jovem do povo e fazia dela Sissi Imperatriz, que é um pouco como ser rainha. É o que fazes comigo: ajudas-me a ser rainha da minha vida e a tornar-me alguém importante e valioso.
E Lava-pés, o meu bairro, é todo especial. Há pessoas de todos os países, pequenas lojas de chineses e barracas de africanos e sul-americanos. Convivem pessoas de todo o género e muitas cumprimentam-se quando se encontram. No meu prédio, damo-nos muito bem. Eu tenho uma amizade especial às do meu piso, sobretudo à Luísa, que é também é uma mulher a dias, e à Rebeca, uma marroquina que passou muito mal ao principio, quando veio para Lava-pés, porque se sentia muito sózinha; agora é uma grande amiga minha.
Mas de quem mais gosto é da Dores, uma excelente mulher que anda sempre muito cansada pelo seu trabalho na rua, mas que não quer que ninguém o saiba. Agora está um pouco estranha, porque arranjou um novo noivo e tem a casa a cheirar a incenso; decorou-a com tapetes e bugigangas indianas e deixou os alimentos congelados para se tomar vegetariana. Ontem fui pedir-lhe dois ovos e disse-me que não me incomodasse a devolver-lhos, pois só utiliza produtos biológicos - que custam um balúrdio. Esteve muito tempo a tentar convencer-me de que não se deve utilizar a frigideira nem o microondas. Que tanto me facilitam o trabalho!...
Que disparate estar a dizer-te estas coisas! A ti, que sabes muito bem tudo o que se passa no mundo e no íntimo de cada um... Há um Salmo de que gosto muito e que diz isto mesmo: tu me envolves por todo o lado e ainda a palavra me não chegou à boca, já tu a conheces perfeitamente. A verdade é que, sendo assim, não seria preciso escrever-te; mas a mim, faz-me muito bem, para ir pondo a minha vida em ordem e para não me perder no caminho, pois com a azáfama desta vida louca que levo, distraio-me e perco-me.
Todos os dias me fazes recuperar o meu lado contemplativo e me enches de mais amor. Curas-me das pequenas arrelias que tenho no trabalho e em casa e preparas-me sempre o coração para o perdão e para o esquecimento. Fazes que seja generosa e ousada ao mesmo tempo. Contigo, sou mais criativa e atrevida, porque, olha, às vezes faço cada loucura!... No hospital já me conhecem e fazem a vista grossa, porque eu falo com qualquer bicho careta e faço uma festa a todos os que passam por mim.
O trabalho no hospital quase não me cansa e fazer qualquer coisa pelos outros também não. O que mais me esgota é a lida de casa. Porque será, se é tão parecido com o que faço noutros sítios? Julgo que é porque os outros me dão valor e me agradecem, ao passo que a minha família pensa que as peúgas vão sozinhas para a gaveta, o lixo para a porta da rua, os papéis para o contentor, as compras para o frigorífico... Algumas vezes peço ajuda, mas aborreço-me por me dizerem: «Sim, mamã, vou já...»; só que esse «já» nunca chega.
Reconheço que tenho certas manias e que gosto de ter a casa arrumada e em ordem para se poder viver nela à vontade; mas não acho justo que mudem tantas vezes de roupa e que me juntem tanta para passar a ferro. Também me enfurece passar tanto tempo a cozinhar para comerem tudo tão depressa... Vês, Senhor, como estou arreliada?
Bem, ajuda-me a ser generosa, a dar sem contar e a pedir ajuda com bons modos. Assim, porto-me como uma rainha, daquelas que dão ordens aos vassalos... e isso não está nada bem. Tenho que pensar que a casa é de todos e tenho que me aborrecer o menos possível quando os outros não dão conta de tudo o que há para fazer. Se a minha família visse como, no hospital, sou amável para toda a gente... Ali nunca resmungo; em casa, pelo contrário, ando revoltada por dentro.
Esta noite estou muito tagarela; é por estar cansada. Mas quero pedir-te por aquelas pessoas de quem falámos. Por todas as do meu bairro. Pelas que vêm de outros países e têm tanta dificuldade em se adaptarem e em fazerem-se entender. Faz que sejamos mais acolhedores, que lhes facilitemos a vida e nos imaginemos na sua pele, em vez de protestarmos por virem tirar-nos o emprego e incomodar-nos.
Esta noite dá um passeio especial por Lava-pés, abraça cada ser humano, põe-lhes o coração contente e infunde em nós o desejo de nos estimarmos e de nos tratarmos como irmãos.
Vês como me libertas das minhas ninharias domésticas e me fazes sentir como uma rainha? Preciso de ti, todos precisam de ti. Amo-te tanto...
Esperança (Imperatriz de Lava-pés)